Infinitempo
Em uma manhã qualquer de uma quarta-feira do ano de 2189, e contradizendo a realidade que se dispunha a quem vivesse naquela mesma era, o brasileiro Eduardo Cavalcante Romeiro criou uma máquina do tempo.
Os detalhes mais específicos acerca de seu dispositivo foram guardados a sete chaves, ninguém teve acesso às plantas do projeto, e mesmo os cientistas que trabalharam nele assinaram um termo de confidencialidade que os impediam de divulgar qualquer informação. A nova era da humanidade havia começado.
Quando a hora chegou, o mundo inteiro parou para ver. Em televisores, celulares, telões de projeção; todo display capaz de reproduzir uma transmissão. Ele estava em todo lugar. O homem que iria mais longe do que qualquer homem havia ido, iria fazer sua primeira viagem no tempo. Revolução. Eduardo sentou-se no banco de couro e sentiu suas costas quentes, apertou o cinto na cadeira, rotacionou os ponteiros do relógio, ajustou as coordenadas na pequena tela e suspirou. O êxtase em si talvez pudesse transbordar se fosse uma pessoa comum. Mas ele não se considerava assim. Durante toda a vida trabalhara para aquele momento; tudo que havia deixado para trás ou desistido de conquistar tornou-se pequeno e desnecessário. O mundo se lembraria dele de qualquer forma. A mente mais brilhante que já passou pela face da terra.
Puxou a alavanca com força e
sentiu um arrepio similar à primeira vez que, quando navegando pelo acervo patrimonial
de mídias mundiais, uma locação quase infinita da intranet que armazenava todos
os filmes, seriados, documentários ou qualquer outro tipo de mídia audiovisual
que tenha sido produzida desde o século XIX, encontrou um filme que lhe chamou
a atenção. Nele, o ápice acontece quando um carro correndo em alta velocidade corta
o asfalto deixando uma língua de fogo em seu encalço, desaparecendo transformado
em luz rumo ao futuro. À época ele sentia que uma mensagem do passado, com
aquele singular filme, tinha atravessado seu percurso no tempo como uma viagem
programada, alcançado seu destino naquele acontecimento peculiar. Em todas as simulações mentais sobre sua esperada
viagem, não tinha esperanças de que as coisas aconteceriam como em De volta para o futuro. Na verdade,
desde que crescera passara a odiar o filme por suas falácias e absurdos,
conhecera a ciência de verdade, a do seu tempo, mas mesmo essa ciência real não
era capaz de inspirá-lo de tal maneira. Suas mãos começaram a formigar quando as
ligas de metal reverberaram, chacoalhando-se numa miragem triplicada da
cápsula, expandindo o ambiente como se o universo desabrochasse. Sentiu a
pressão do ar apertando o peito, o corpo convergindo para dentro de si,
formando uma espiral de energia e luz. Os ponteiros do relógio em seu pulso
começaram a girar descontrolados, e um globo de puro azul o envolveu. Ao seu
redor, a realidade se desfragmentou, estilhaçando a normalidade plácida como
uma pedra caindo em um lago. As ondas do tempo o transformaram num rodamoinho
espectral que desapareceu do descampado num piscar de olhos. Tudo acontecera
numa mínima fração de tempo. Nos microssegundos de imersão em seu espaço
contorcido e irreal, percebeu que a viagem seria mais silenciosa do que
imaginava. Por um momento se viu imerso numa escuridão blocada de luzes. Não tinha
clareza suficiente para descrever o que via, mas sentiu que podia observar o
tempo como uma linha de eventos, e ele poderia viver todos de uma única vez. Em
seu âmago, na profusão de sentimentos digladiando em sua cabeça que pouco
compreendia a titânica dimensão de tudo aquilo que presenciava, Eduardo
Cavalcante Romeiro, o homem que iria além do qualquer homem já fora, tornou-se
seu próprio deus.
***
A sensação que teve foi a de
fechar os olhos.
Quando os abriu, uma profusão
de luzes atingiu seu rosto. Estava parado no centro da cidade, sem a máquina (estranho). Os sons dos carros distantes
pareciam se aproximar, com o zumbido incessante dando espaço a orquestra da
cidade. Buzinas, pessoas, carros, luzes e som. Projeções holográficas
gigantescas ascendiam aos céus em prédios que faziam se perder de vista. O
futuro, como escrito pelas profetas da ficção, ou imaginado pelos cientistas
das eras; o futuro era o presente.
Quebrou o fascínio infantil de
ver o mundo sobre um novo prisma, guardando essas informações para um deleite
posterior, quando pudesse finalmente reportar o sucesso de seus experimentos, e
caminhou pelas ruas. Era um mundo novo, diferente e talvez até mesmo irreal.
Ver com tanta clareza um panorama de tamanha magnitude era capaz de enlouquecer
um homem. Os carros ainda andavam, mas alguns deles certamente voavam. Um
tráfego aéreo cortava os prédios seguindo uma linha imaginaria, com pequenas
informações e placares de sinalização na parte exterior dos edifícios. A
tecnologia em eficiência máxima. Caminhou por ruas estreitas e estranhas, viu
pessoas diferentes e exóticas, e percebeu que os anos que se passaram haviam
mudado tudo. Ou quase.
Seu principal objetivo era
encontrar o laboratório e ver com seus próprios olhos o que o mundo ganhou com
a sua revolução. Sentia que parte de tudo aquilo que via e experienciava, era
graças aos seus esforços. O poder de dobrar o tempo, de quebrar o espaço e
moldá-lo à sua maneira. Havia iniciado a era dos semideuses.
Seguiu os placares eletrônicos
até encontrar o laboratório. Um prédio alto e cinza no meio de tantos outros.
Não existiam tantos prédios assim no passado. Entrou no edifício, completamente
diferente do que tinha visto no dia anterior. Bem tecnológico, assim como tudo
que existia naquele tempo, mas nada de cair o queixo. Ainda era, como na sua
época, um lugar modesto. Esperava uma estátua ou alguma referência ao homem que
domou Cronos, mas encontrou a recepção com cara
de recepção. Se aproximou do balcão, falou com uma mulher que parecia entediada
e lhe respondeu com poucas palavras. Não conseguiu muitas informações.
Perguntou sobre o Dr. Eduardo Cavalcante Romeiro. A secretária apenas zombou do
nome de velho e disse que jamais tinha ouvido falar. Mas o que se pode esperar
de uma secretária? Porque ela se interessaria em mecânica quântica?
– ...uma água? – Ouviu ao
fundo a mulher falando.
– O que?
– O senhor aceita uma água?
Não parece bem.
Eduardo notou que apertava a
têmpora com as pontas dos dedos. Os sons começaram a se afastar novamente,
tomando distância enquanto se distorciam em flashes. Sentiu o gosto de todas as
cores no arco-íris caleidoscópico que virou sua mente e fechou os olhos.
***
Eduardo sentou-se no banco de
couro e sentiu suas costas quentes, apertou o cinto na cadeira, rotacionou os
ponteiros do relógio, ajustou as coordenadas na pequena tela e suspirou. (de novo?). Parou. Foi acometido pela
estranheza de um dèjá-vu. Puxou a alavanca e o mundo se desfez. A mesma sensação,
tragado pela luz, tornando-se espiral. De volta para o futuro.
Acordou na mesma rua. Sua
cabeça parecia martelar a cada sacolejada do corpo. Andava com certa
dificuldade, as luzes pareciam mais fortes e os sons mais altos. Fez o mesmo
percurso, com a lembrança distante de já tê-lo feito, e voltou à recepção. A
mulher o olhou com estranheza, o homem não parecia muito bem. Fez as mesmas
perguntas, recebeu as mesmas respostas. A cada vez que a mulher falava, sua cabeça
completava a sentença. Mas Eduardo não entendia o que era aquilo.
– Não conheço nenhum Eduardo,
senhor. É um nome um pouco velhinho, né?
Escuridão.
Ele sentiu suas pernas
fraquejando e despencou dentro de si. Uma queda vertiginosa de microssegundos.
***
Eduardo sentou-se no banco de
couro e sentiu suas costas quentes, apertou o cinto na cadeira, rotacionou os
ponteiros do relógio, ajustou as coordenadas na pequena tela e suspirou... teve
um estalo de repente, mas já era tarde demais. Puxou a alavanca e o mundo se
desfez. Fechou os olhos por um segundo e os abriu no novo mundo. O futuro. Mas
também o passado.
Sua cabeça doía, na mente
imagens simulavam um trajeto pelas avenidas. Era capaz de ver um espectro do
seu passado-futuro perambulando para
o mesmo que caminho que já fizera outras duas vezes. Entrou na recepção e a
mulher o olhou de cima a baixo. Ouviu em sua cabeça diálogos do pretérito. Nas
ruas, as pessoas falavam caladas, e ali dentro pôde ouvir a pergunta “o
senhor aceita uma água?”.
– Não! – Respondeu de
imediato. A secretária o encarou com apreensão.
– Pois não, senhor?
– Eu não quero água! – “É um
nome um pouco velhinho, né?”
– O senhor está bem?
– E daí que é nome de velho!
Levou as mãos à cabeça,
desesperado. Que vozes eram aquelas? O que estava acontecendo?
Tencionou os músculos para se
mover e caiu na escuridão.
***
Eduardo sentou-se no banco de
couro e sentiu suas costas quentes, apertou o cinto na cadeira, rotacionou os
ponteiros do relógio, ajustou as coordenadas na pequena tela e suspirou, e logo
em seguida sentiu falta de ar. Seus olhos se arregalaram enquanto sua mão, de
forma quase que automática, acionava a alavanca.
Escuridão, quebra, sons,
distantes, luzes, vozes.
Voltou ao mesmo lugar. Agora
sentia que não era apenas ele, mas três versões de si caminhando pelos mesmos
lugares, alternando passos e lados da calçada, indo em direção ao laboratório.
Não sabia mais o que faria ali, mas precisava estar. A secretária o olhou, ele
tinha o poder da insanidade consigo. Viu a mulher com várias cabeças, como um
deus hindu. E cada uma delas entoava um novo passado. “máquina do tempo”
lembrou de ouvir-se dizer. E a palavra louco como resposta.
Escuridão e queda. Retorno.
***
“Onde
foi que eu errei?”
As costas quentes, a cadeira, a sensação, o desespero e as
vozes. Tudo de uma vez, envolto numa espiral de luz, e o futuro. Agora, já se
perdia em suas próprias projeções. Ouvia as vozes atravessando os universos que
criara, e todas elas o atingiam como morteiros. Sentiu-se bombardeado pela sua
própria mente enquanto o tempo se desfarelava ao seu redor.
“Eu
não sei o que está acontecendo...”
Foi e voltou diversas vezes, com um tempo cada vez mais
curto, ouvindo as mesmas vozes, uma cacofonia de carros que faziam suas orelhas
de viaduto. Depois de um curto período, já não conseguia chegar ao laboratório.
Caia antes, voltando num buraco para o país das maravilhas: seu momento de
deleite, a criação de um deus.
“Socorro!”
O tempo se desfragmentou e reconstruiu. Dez, cem, mil
vezes. E ele se perdeu em algum momento, destroçado e corrompido. Fadado ao
eterno fracasso, condenado ao sucesso sem fim. O único homem do mundo a
construir uma máquina do tempo com defeito. Não podia chorar.
“De
volta, de volta, de volta!”
Voltou à cabine uma última vez. Olhos fundos e pesados,
músculos condicionados repetindo o mesmo movimento. Ajustou o relógio e puxou a
alavanca.
“Quem
é Eduardo?”
***
Foi atingindo novamente pela
pressão. Subindo por dentro e explodindo, a realidade se esticou e comprimiu um
zilhão
de vezes, como um buraco negro sugando a si mesmo, e ele sentiu seu corpo se desconstruir
e reconstruir numa escala subatômica. Enquanto sua mente tentava encontrar um
ponto de ancoragem nalguma fração de realidade, todos os mesmos acontecimentos
giravam por trás de seus olhos numa roleta. Ouviu com clareza o som de vidro
estilhaçado enquanto sua consciência era rasgada feito um pano puído. Qualquer
noção de existência desapareceu junto com os ecos do passado. Ninguém mais
falava, os rostos perderam os traços até se tornarem um espelho de si. Ele era
todos que conhecia. Ele era tudo e não era nada. Todos os tempos que existiram
em qualquer universo se dispuseram frente a ele, em uma linha, ou como um
fluxo, ou como a força de um tornado ao redor de seu olho. Ele via tudo, era a
consciência aprimorada de toda a existência.
Caminhou sem sair do lugar,
contemplando o seu rosto refletido em todas as miragens que se transmutavam
diante e através de seus olhos. Era o tempo em sua pura essência. Infinito e
irreal, final e surpreendente.
Perdeu-se para sempre, eternamente no futuro, irremediavelmente ligado ao passado, vivendo o presente. Chegara mais longe do que qualquer homem poderia chegar; no começo e no fim de todas as coisas. Tornou-se tempo, infinito tempo...
Janela de Outono
Acho que já perdi a conta das vezes que olhei, sentado no sofá estrategicamente colocado na varanda, a mesma árvore balançando na cadência aleatória dos ventos que sopram no outono. Os dias iguais terminam e recomeçam, o sol no mesmo lugar, as nuvens aqui e ali e os sons diminutos da vida acontecendo. É como viver num tempo repleto de atemporalidades.
Olhar para essa árvore me fazia pensar. No presente incerto, nas coisas que deixamos para trás; sonhos, desejos, futuro e a própria vida. Pensei também nos meus amores, nos relacionamentos interpessoais, em todos que passaram e os que ainda irão passar. Desenhei e redesenhei inúmeras vezes a mesma paisagem na minha própria cabeça, apenas para poder me observar.
Hoje é o mesmo dia de ontem, e sentado no mesmo lugar com o horário próprio para reflexão, eu vejo o balançar das folhas enquanto escrevo. Talvez haja um magnetismo que me prende, talvez seja só o tédio instaurado nos dias sem fim e na mania que temos na constante ideia de produzir 24/7. Talvez não seja nada disso e tudo é por acaso; mas quanto mais eu olho, menos eu consigo me desviar e, talxrz, poroljar dmajs, eu possd coemcar e errar as pakavras ste nao consguiur escrrver corretament nemhuma delsa...
Imagem:https://www.flickr.com/photos/jonk/18092848/
Alquimia
teu silêncio me fala pelo peito
vibra e gesticula,
forçando a gravidade das coisas
como luz a dobrar-se
diante a atração de uma singularidade
teus olhos vislumbram um futuro distante
eu me perco nas linhas do teu tempo
e você segue sozinha
distante, longe
além do alcance
e agora imerso em mim, eu fito o horizonte
vejo nele o fim de todas as coisas
e o mundo em líquido escorre feito aquarela numa tela
desfeito, a água desmoronando o linho da pintura
eu me vejo em branco (de novo?)
pego os pincéis, perdidos em algum lugar da alma
e recomeço
feito livro ou quadro
escultura ou retrato
juntando os cacos e inspirando no ar o sabor das frustrações
um artista solitário num mundo lusco-fusco
pintando a história da vida numa nova alvorada
traçando linhas dum céu azul
em direção ao zênite
Antes do mundo acabar
corpo a corpo
na fogueira que nasce do peito
nossos olhares se aquecem
qualquer movimento é faísca
- fogo!
nas curvas do teu corpo
meus dedos são caneta
escrita lasciva em pele de cetim
e sua boca a recitar versos de prazer.
e eu escrevo um novo idioma
verbalizo o êxtase divino
com sabor de ambrosia
no momento de um beijo.
o mundo escorre
com tinta a desaguar pelas paredes
nos fazendo caleidoscópio
e manchando de luxúria
a pureza de um céu anil.
pulsantes estrelas
bailam no eterno tempo.
- dedos a percorrer linhas da vida
na palma das mãos
que contam nossas histórias.
o cerne de tudo em nosso universo particular,
eu e você em perfeita combustão;
enleio selvagem
na fria e calorosa lembrança
de uma noite de primavera.